segunda-feira, 13 de junho de 2011

Desnamorados.



Combinaram o jantar no dia anterior, por telefonema de iniciativa de Pilar. Falaram da semana, do frio dos últimos dias, e marcaram às vinte horas do domingo sem pressagiar as conseqüências. Se encontraram na frente da casa de Acir, Pilar a pé, de saia comprida e as botas de inverno. Acir com fome e sereno, Pilar alheia à data, desromantizada. Mas a verdade é que ninguém te deixa desromantizar no dia dos namorados – Acir sentiu, pensou com ele mesmo, e sorriu enquanto fechava o portão da frente com duas voltas de cadeado.
Escolheram um restaurante qualquer, da vizinhança, que já é tarde, Acir, e estamos a pé. Acir concordou, como fazia sempre com Pilar e com quase todo o resto. Chegaram, entraram. Tudo à meia luz, decorado em meios-tons de todos os vermelhos da paleta de cores do universo, com flores por todos os cantos (até os cantos que não eram bem cantos). Danni Carlos no som ambiente fez Acir perguntar o que era aquilo e Pilar respondeu, com aquele jeito de não há o que você queira saber que eu não tenha a resposta, Acir. Se olharam, acharam engraçado. Escolheram uma mesa de dois lugares, frente a frente.
Os casais estavam por toda a parte. E todo o tipo deles. Não prestaram atenção em nenhum em especial e sentaram. Pilar reparou no guardanapo de pano vermelho com rosa colombiana de entorno, para segurar. Acir refletiu a utilidade da mesa composta de talheres e mais outros, duas taças e um copo de cristal. Os dois notaram o arranjo robusto de flores no centro, com cartão colocado no meio. Acir puxou e leu um pedaço de As sem-razões do amor, editado em uma daquelas fontes que imitam letra de mão, mas logo se arrependeu. Se olharam. Pilar sorriu de canto e Acir comentou o cabelo, a saia e a bota. Pediram o cardápio.
O menu era especial de Dia dos Namorados. Entrada, prato principal, sobremesa e vinho. O garçom, vestido de camisa e colete, chegou à mesa com um sorriso ainda mais alinhado que a própria roupa, e como quem diz desculpe atrapalhar, meus caros. Acir sorriu com os olhos e Pilar fez o pedido, sem vais e vens.
Não se sabe mais qual foi o primeiro a tocar no assunto. Acir falou dos dois, Pilar dos póstumos. Ela, já desconcentrada, desconcertada. Ele indagou e ela culpou as vozes, os sussurros daquela gente toda, namorada, que parece que nunca saiu para jantar. Virou a cadeira, incomodou. Mudou de assunto. Dali a pouco e de novo, os sussurros. Mais ainda, os risos e sorrisos dos outros, os papéis de presente, as mãos. Mão no cabelo, mão na mão, mão no pescoço e olhos de alguém por favor me abre esse laço de fita maior do que eu. Os dois se olharam também.
Acir insistiu. Falou do sorriso e comparou. Reviveu presentes e jantares. E daí os embrulhos, os filmes, as cartas, os poemas de autoria própria e os copiados, os e-mails de vamos almoçar logo que estou com fome, as segundas-feiras, os domingos de rede e cigarro de palha, os sábados avulsos de livro repetido. Os dedos na cara. Os abraços de não quero mais nada, só isso. Os cafés amargos e as discussões de quem quer chegar em algum lugar e as de lugar nenhum. As portas fechadas, as abertas e as encostadas. As frestas de janela. Pilar chamou o garçom, pediu a conta, olhou e desviou o olhar.
Caminharam mudos até a casa de Acir. Ele olhou para o chão e ela fingiu reparar em detalhes do caminho. Se despediram sem se olhar. Acir entrou no quarto e apagou a luz. Já sabia de tudo, inclusive que Pilar não sabia, e por saber, consentiu e desculpou.
Pilar andou de passos largos até o café mais próximo. Tomou três espressos e inventariou os medos, que lembrança boa é traiçoeira, vai e volta, e por isso não se pode inventariar.